terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A INQUIETA CERTEZA DA DÚVIDA


Traços finos, rosto perfeito, corpo discreto, facilmente confundível com um anjo ou algo de angelical em forma humana. Natureza permanentemente inquieta, insegura, insatisfeita. Podia ter sido  pintor, mas optou pela música. Interrogou-se, multiplicou-se para melhor se conhecer, perdeu-se a meio do caminho, voltou a encontrar-se. Este era David Bowie, um artista na plenitude do termo na medida em que para além de criar as suas obras se criava a si próprio um pouco todos os dias. Para mim foi um dos meus primeiros deuses da adolescência. Havia um poster Ziggy Stardust onde o rosto indefinido e penteado em forma explosiva anos 70 não conseguia definir se era um homem ou uma mulher. Ele era diferente de todos os outros porque era apenas ele e as suas contradições e nada se lhe conseguia aproximar. Extravagante, criador das modas antes delas nascerem ou um simples lord engravatado que dava uma conferência de imprensa no Festival de Cannes.

De Bowie, obviamente para além da incontornável carreira como compositor e intérprete há a imagem de uma personalidade que se foi desdobrando como actor. Embora de uma forma muito menos significativa a carreira de Bowie no Cinema acaba por contribuir de alguma forma no reforço e pormenor da sua imagem, que é como quem diz: “do seu imaginário”.

A este propósito retenho três momentos. THE MAN WHO FELL TO EARTH, de Nicholas Roeg (1976); MERRY CHRISTMAS MR LAWRENCE, de Nagisa Oshima (1983); THE HUNGER, de Tony Scott (1983).


No primeiro caso acompanhamos um extraterrestre que vem à terra empenhado em garantir o fornecimento de água para o seu planeta. Thomas Jerome Newton, o nome que adopta, confronta-se então com as contradições e os buracos de uma sociedade onde se pretende encaixar temporariamente. No segundo caso Bowie é o Major Jack Celliers, um homem destemido, mas ao mesmo tempo prisioneiro dos seus fantasmas e das suas angústias. Numa realidade de cativeiro violento e com pouca esperança de sobreviver é Scalliers que espalha com a sua influência e o seu comportamento meio lunático algum otimismo resistente nos seus companheiros. Ao ponto de sacrificar própria vida por eles. Em THE HUNGER John é um vampiro que acompanha a sua mulher há séculos, mas que começa a envelhecer de uma forma muito acelerada. Miriam Baylock seduz os seus amantes com promessas de eternidade após a sua dentada. No entanto esse encantamento termina na altura em que ela os abandona ou deixa de ter interesse por eles.

Em todas estas referências cinematográficas Bowie é um ser “de fora”, um estranho em terra estranha. Alguém que se confronta com uma realidade diferente da sua natureza, um viajante a atravessar o seu caminho. Talvez o retrato mais completo se centre na obra de Oshima na medida em que Celliers vive um conflito absoluto, dentro e fora de si apesar de exibir uma imagem comportamental totalmente diferente. Celliers está preso num campo militar japonês e corre o risco de nunca mais voltar a casa. As pontas soltas que deixou para trás (especialmente a relação com o irmão mais novo) vão continuar assim porque não vai conseguir regressar. Por outro lado a ordem que se lhe apresenta, a realidade com a qual se confronta acaba por se tornar o único desafio válido. É urgente resistir-lhe, é urgente fazer passar a mensagem de que não o consegue derrubar. E transmitir esse entusiasmo aos companheiros, não para os salvar da morte certa, mas para os afastar da derrota inevitável de ceder ao desespero.


Em THE HUNGER a fidelidade secular acaba por ver o fim dos seus dias manifestando-se num envelhecimento acelerado, sem retorno. Nestas três situações distintas Bowie é ele próprio na medida da sua permanente insatisfação. O mundo, a realidade em geral é uma entidade hostil, uma travessia num purgatório de sofrimento e contrariedade que é obrigatório atravessar. Se no fim da linha acabamos por morrer é secundário. A viagem é o contrato para inventar, resistir, fazer nascer universos paralelos a ela. Universos onde beleza, harmonia, estética, justiça e equilíbrio se possam vestir com as roupas da realidade pela simples razão de que nada se pode imaginar e criar se não for real. E estas tarefas normalmente estão reservadas aos anjos.



Hoje Bowie terminou a sua travessia neste purgatório. Uma nova estrela brilha no céu iluminando um pouco mais as nossas noites solitárias. No entanto não ficámos de mãos vazias. Connosco foi deixada uma herança de património musical e estético que nos ajudou a crescer mais um pouco. E é em nome dessa herança que hoje, em vez de lamentar mais uma morte nos devemos curvar e dizer “obrigado”.



Artur


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