Traços finos, rosto perfeito, corpo discreto, facilmente confundível com um anjo ou algo de angelical em forma humana. Natureza permanentemente inquieta, insegura, insatisfeita. Podia ter sido pintor, mas optou pela música. Interrogou-se, multiplicou-se para melhor se conhecer, perdeu-se a meio do caminho, voltou a encontrar-se. Este era David Bowie, um artista na plenitude do termo na medida em que para além de criar as suas obras se criava a si próprio um pouco todos os dias. Para mim foi um dos meus primeiros deuses da adolescência. Havia um poster Ziggy Stardust onde o rosto indefinido e penteado em forma explosiva anos 70 não conseguia definir se era um homem ou uma mulher. Ele era diferente de todos os outros porque era apenas ele e as suas contradições e nada se lhe conseguia aproximar. Extravagante, criador das modas antes delas nascerem ou um simples lord engravatado que dava uma conferência de imprensa no Festival de Cannes.
De Bowie, obviamente para além da
incontornável carreira como compositor e intérprete há a imagem de uma
personalidade que se foi desdobrando como actor. Embora de uma forma muito
menos significativa a carreira de Bowie no Cinema acaba por contribuir de
alguma forma no reforço e pormenor da sua imagem, que é como quem diz: “do seu
imaginário”.
A este propósito retenho três
momentos. THE MAN WHO FELL TO EARTH, de Nicholas Roeg (1976); MERRY CHRISTMAS
MR LAWRENCE, de Nagisa Oshima (1983); THE HUNGER, de Tony Scott (1983).
No primeiro caso acompanhamos um
extraterrestre que vem à terra empenhado em garantir o fornecimento de água
para o seu planeta. Thomas Jerome Newton, o nome que adopta, confronta-se então
com as contradições e os buracos de uma sociedade onde se pretende encaixar
temporariamente. No segundo caso Bowie é o Major Jack Celliers, um homem destemido,
mas ao mesmo tempo prisioneiro dos seus fantasmas e das suas angústias. Numa
realidade de cativeiro violento e com pouca esperança de sobreviver é Scalliers
que espalha com a sua influência e o seu comportamento meio lunático algum
otimismo resistente nos seus companheiros. Ao ponto de sacrificar própria vida
por eles. Em THE HUNGER John é um vampiro que acompanha a sua mulher há séculos,
mas que começa a envelhecer de uma forma muito acelerada. Miriam Baylock seduz
os seus amantes com promessas de eternidade após a sua dentada. No entanto esse
encantamento termina na altura em que ela os abandona ou deixa de ter interesse
por eles.
Em todas estas referências
cinematográficas Bowie é um ser “de fora”, um estranho em terra estranha.
Alguém que se confronta com uma realidade diferente da sua natureza, um
viajante a atravessar o seu caminho. Talvez o retrato mais completo se centre
na obra de Oshima na medida em que Celliers vive um conflito absoluto, dentro e
fora de si apesar de exibir uma imagem comportamental totalmente diferente.
Celliers está preso num campo militar japonês e corre o risco de nunca mais
voltar a casa. As pontas soltas que deixou para trás (especialmente a relação
com o irmão mais novo) vão continuar assim porque não vai conseguir regressar.
Por outro lado a ordem que se lhe apresenta, a realidade com a qual se
confronta acaba por se tornar o único desafio válido. É urgente resistir-lhe, é
urgente fazer passar a mensagem de que não o consegue derrubar. E transmitir
esse entusiasmo aos companheiros, não para os salvar da morte certa, mas para
os afastar da derrota inevitável de ceder ao desespero.
Em THE HUNGER a fidelidade
secular acaba por ver o fim dos seus dias manifestando-se num envelhecimento
acelerado, sem retorno. Nestas três situações distintas Bowie é ele próprio na
medida da sua permanente insatisfação. O mundo, a realidade em geral é uma
entidade hostil, uma travessia num purgatório de sofrimento e contrariedade que
é obrigatório atravessar. Se no fim da linha acabamos por morrer é secundário.
A viagem é o contrato para inventar, resistir, fazer nascer universos paralelos
a ela. Universos onde beleza, harmonia, estética, justiça e equilíbrio se
possam vestir com as roupas da realidade pela simples razão de que nada se pode
imaginar e criar se não for real. E estas tarefas normalmente estão reservadas
aos anjos.
Hoje Bowie terminou a sua
travessia neste purgatório. Uma nova estrela brilha no céu iluminando um pouco
mais as nossas noites solitárias. No entanto não ficámos de mãos vazias.
Connosco foi deixada uma herança de património musical e estético que nos
ajudou a crescer mais um pouco. E é em nome dessa herança que hoje, em vez de
lamentar mais uma morte nos devemos curvar e dizer “obrigado”.
Artur
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