Campo de Ourique, anos 80, fim de
uma tarde de Verão. Na tasca do “João dos Cornos” (hoje convertida em
restaurante fino para “gourmetzinhos” e papalvos em geral) a happy hour ia a meio caminho da sua
duração. O terceiro jarro de vinho acelerava os insultos e aumentava a
algazarra entre os bêbados. Juras de vida e morte, promessas de tareias com
alguns socos no vazio a fazer de cartões de visita, a voz do papagaio Zebedeu
nos intervalos dos insultos ( “ oh cabrão, oh cabrãããõ, já pagaste..?). Zebedeu
era o encanto e o ex-libris do “João dos Cornos”. Todos os dias de manhã a
gaiola era pendurada cá fora mesmo em frente ao bulício do mercado. Entre
assobios a dois tons, “bons dias” e “olás”, o Zebedeu ia cumprimentando os
passantes. A partir das cinco da tarde trocava o Cd e o desempenho vocal
complicava-se. Talvez por ausência do Sol, o Zebedeu ficava furioso e
reclamava. Saltava para o capítulo do vernáculo e desatava a insultar tudo e
todos pela falta de luz. Era nessa altura que o dono o vinha buscar para o
pendurar lá dentro. A retirada do Zebedeu coincidia com a altura da saída do
trabalho, momento de enchente e aumento da clientela.
No Verão não se passava nada no
bairro. As férias, o calor e aquele lento passar dos dias contribuíam para que
uma espécie de encanto adormecesse as ruas. Não se passar nada, é uma maneira
de dizer. Acabava sempre por acontecer qualquer coisa desde o encontro Lisboa –
Madrid de danças de salão na Alunos de Apolo em Junho, até ao início do
campeonato nacional de futebol em finais de Setembro, passando por ocasionais
cenas de violência doméstica virada para o exterior, muito apreciadas enquanto
numero de variedades pela população residente. Naquela década fantástica a
minha geração resolveu deixar o seu contributo para as actividades de veraneio
no bairro. Tratava-se dos acidentes de automóvel, um número sempre atractivo
com casa cheia garantida e participação inesgotável da audiência palpiteira.
Essa atracção foi magnificamente inaugurada pelo meu amigo Lapas, imortalizado
no “Atrás do Pôr do Sol” no papel de “Broncas”. O Lapas, além de ter o pé
pesado sobre o acelerador, acabou por se especializar em capotar carros. Ao fim
da quinta ou sexta manobra deste tipo, acabou por morrer. Não vos vou contar
alguns dos mais incríveis acidentes do género que ele teve porque tenho a
certeza que não iriam acreditar, por isso vou-me limitar a referir a tarde de
estreia.
Estávamos sentados na esplanada
do café quando um tipo entrou esbaforido aos gritos. “ Malta, o Lapas
espetou-se, teve um grande acidente, uma cena muito má mesmo, não sei se não
haverá mortos. Foi muito violento, venham depressa.” Entre o espanto e a
suspeita de exagero lá nos fomos levantando, alguns aproveitando para fazer a
finta a pagar a imperial, e correndo na direcção do acontecimento. Quando
chegámos o cenário era digno de uma qualquer grande produção cinematográfica. O
carro do Lapas estava tombado com o tejadilho encostado às portas da tasca do
“João dos Cornos”. Lá dentro os bêbados aos gritos que não conseguiam sair, que
iam morrer, etc. O Zebedeu juntava-se ao coro insultando as mães e as mulheres
de toda a gente. Dois bombeiros preparavam-se para serrar uma porta para tirar
o Lapas lá de dentro. Um deles, que não conhecia o Zebedeu ergueu a cabeça e a
voz “ ‘tás a chamar cabrão a quem, pá ?”
Lá lhe tivemos que explicar que era um papagaio. A cerca de uma dezena de
metros, no cruzamento anterior, uma respeitável e veneranda senhora de idade
estava sentada dentro de um Citroen Dyane, branca como a cal. A frente do carro
tinha desaparecido o que permitia ver as pernas e os pés da senhora ao ar
livre. Balbuciava sons imperceptíveis, recusava-se a sair do carro. Quando
finalmente conseguiu falar, repetia insistentemente “o meu marido…os documentos…o
meu marido…os documentos” enquanto a bombeira tentava saber se lhe doía alguma
coisa, onde morava, etc. Ora,
rebobinando e tentando reconstruir o ocorrido, como diria o policia que
apareceu uma hora depois a tresandar a vinho, o Lapas atravessava a quadrícula
pombalina do bairro em linha recta. Se o cruzamento lhe dava prioridade, então
nem sequer abrandava. Dava-lhe um cheirinho de acelerador para atravessar mais
depressa. A senhora do Dyane deslocava-se em marcha lenta, andamento típico
para o seu estatuto. Abordou o cruzamento com todas as cautelas, abrandou e
deixou apenas que o nariz do carro cheirasse se vinha alguém. O Lapas apareceu
exactamente nessa altura, varreu a frente do carro, levantou em duas rodas e
foi a dançar até à tasca, acabando por tapar as duas únicas portas com o
tejadilho. Estava portanto concluído o número de circo daquela semana, numa
verdadeira apoteose folclórica. Felizmente ninguém se aleijou e os estragos
limitaram-se a chapa torcida e horas extras para as seguradoras. Não sei se era
do ar se da ausência de humidade, o que sei é que no Verão os dias no bairro
eram sempre estranhamente excitantes.
Artur
1 comentário:
Tinha família a viver na Ferreira Borges. Ia lá sempre uns dias no Verão. Aquele cheirinho sabia-me sempre a pouco. Agora sei porquê. Obrigado pela Crónica e um abraço.
Enviar um comentário