terça-feira, 6 de agosto de 2013

MAIS UMA CRÓNICA DO BAIRRO


 

 

Campo de Ourique, anos 80, fim de uma tarde de Verão. Na tasca do “João dos Cornos” (hoje convertida em restaurante fino para “gourmetzinhos” e papalvos em geral) a happy hour ia a meio caminho da sua duração. O terceiro jarro de vinho acelerava os insultos e aumentava a algazarra entre os bêbados. Juras de vida e morte, promessas de tareias com alguns socos no vazio a fazer de cartões de visita, a voz do papagaio Zebedeu nos intervalos dos insultos ( “ oh cabrão, oh cabrãããõ, já pagaste..?). Zebedeu era o encanto e o ex-libris do “João dos Cornos”. Todos os dias de manhã a gaiola era pendurada cá fora mesmo em frente ao bulício do mercado. Entre assobios a dois tons, “bons dias” e “olás”, o Zebedeu ia cumprimentando os passantes. A partir das cinco da tarde trocava o Cd e o desempenho vocal complicava-se. Talvez por ausência do Sol, o Zebedeu ficava furioso e reclamava. Saltava para o capítulo do vernáculo e desatava a insultar tudo e todos pela falta de luz. Era nessa altura que o dono o vinha buscar para o pendurar lá dentro. A retirada do Zebedeu coincidia com a altura da saída do trabalho, momento de enchente e aumento da clientela.

No Verão não se passava nada no bairro. As férias, o calor e aquele lento passar dos dias contribuíam para que uma espécie de encanto adormecesse as ruas. Não se passar nada, é uma maneira de dizer. Acabava sempre por acontecer qualquer coisa desde o encontro Lisboa – Madrid de danças de salão na Alunos de Apolo em Junho, até ao início do campeonato nacional de futebol em finais de Setembro, passando por ocasionais cenas de violência doméstica virada para o exterior, muito apreciadas enquanto numero de variedades pela população residente. Naquela década fantástica a minha geração resolveu deixar o seu contributo para as actividades de veraneio no bairro. Tratava-se dos acidentes de automóvel, um número sempre atractivo com casa cheia garantida e participação inesgotável da audiência palpiteira. Essa atracção foi magnificamente inaugurada pelo meu amigo Lapas, imortalizado no “Atrás do Pôr do Sol” no papel de “Broncas”. O Lapas, além de ter o pé pesado sobre o acelerador, acabou por se especializar em capotar carros. Ao fim da quinta ou sexta manobra deste tipo, acabou por morrer. Não vos vou contar alguns dos mais incríveis acidentes do género que ele teve porque tenho a certeza que não iriam acreditar, por isso vou-me limitar a referir a tarde de estreia.

Estávamos sentados na esplanada do café quando um tipo entrou esbaforido aos gritos. “ Malta, o Lapas espetou-se, teve um grande acidente, uma cena muito má mesmo, não sei se não haverá mortos. Foi muito violento, venham depressa.” Entre o espanto e a suspeita de exagero lá nos fomos levantando, alguns aproveitando para fazer a finta a pagar a imperial, e correndo na direcção do acontecimento. Quando chegámos o cenário era digno de uma qualquer grande produção cinematográfica. O carro do Lapas estava tombado com o tejadilho encostado às portas da tasca do “João dos Cornos”. Lá dentro os bêbados aos gritos que não conseguiam sair, que iam morrer, etc. O Zebedeu juntava-se ao coro insultando as mães e as mulheres de toda a gente. Dois bombeiros preparavam-se para serrar uma porta para tirar o Lapas lá de dentro. Um deles, que não conhecia o Zebedeu ergueu a cabeça e a voz “  ‘tás a chamar cabrão a quem, pá ?” Lá lhe tivemos que explicar que era um papagaio. A cerca de uma dezena de metros, no cruzamento anterior, uma respeitável e veneranda senhora de idade estava sentada dentro de um Citroen Dyane, branca como a cal. A frente do carro tinha desaparecido o que permitia ver as pernas e os pés da senhora ao ar livre. Balbuciava sons imperceptíveis, recusava-se a sair do carro. Quando finalmente conseguiu falar, repetia insistentemente “o meu marido…os documentos…o meu marido…os documentos” enquanto a bombeira tentava saber se lhe doía alguma coisa, onde morava, etc.  Ora, rebobinando e tentando reconstruir o ocorrido, como diria o policia que apareceu uma hora depois a tresandar a vinho, o Lapas atravessava a quadrícula pombalina do bairro em linha recta. Se o cruzamento lhe dava prioridade, então nem sequer abrandava. Dava-lhe um cheirinho de acelerador para atravessar mais depressa. A senhora do Dyane deslocava-se em marcha lenta, andamento típico para o seu estatuto. Abordou o cruzamento com todas as cautelas, abrandou e deixou apenas que o nariz do carro cheirasse se vinha alguém. O Lapas apareceu exactamente nessa altura, varreu a frente do carro, levantou em duas rodas e foi a dançar até à tasca, acabando por tapar as duas únicas portas com o tejadilho. Estava portanto concluído o número de circo daquela semana, numa verdadeira apoteose folclórica. Felizmente ninguém se aleijou e os estragos limitaram-se a chapa torcida e horas extras para as seguradoras. Não sei se era do ar se da ausência de humidade, o que sei é que no Verão os dias no bairro eram sempre estranhamente excitantes.

 

Artur

1 comentário:

Hélder disse...

Tinha família a viver na Ferreira Borges. Ia lá sempre uns dias no Verão. Aquele cheirinho sabia-me sempre a pouco. Agora sei porquê. Obrigado pela Crónica e um abraço.