Cresci num bairro de Lisboa que nos anos 50 e 60 foi apelidado de “Quartier Latin” da cidade, que o mesmo é dizer: “o bairro dos artistas”. Actores, escritores, artistas plásticos, pensadores, tudo vivia ali se bem que na altura não déssemos muito conta disso. Na sua essência, Campo de Ourique era muito mais que um somatório de nomes de personalidades conhecidas, muito mais que um bairro de fortes tradições republicanas. Era essencialmente uma enorme escola urbana onde se aprendia a Democracia, a respeitar a diferença, a viver entre várias dimensões da cartilha da sociedade…para o bom e para o mau. Desde aristocratas decadentes até operários clássicos do conceito proletário, passando pela esmagadora maioria da classe média dos serviços e ministérios, o bairro enquanto espaço de ocupação, era apenas um. Os cafés, os jardins, as lojas, os restaurantes, o Correio, as escolas, etc, eram lugares onde todos se encontravam e conviviam de forma solidária, como numa aldeia desenhada a regra e esquadro pelos arquitectos pombalinos. A prova final deste conceito inscrevia-se nos filhos desta gente toda (eu e os meus amigos). Crescemos juntos, fomos à escola juntos e, nem por um instante nos apercebíamos que haveria uma hipotética escada na sociedade, ocupada nos vários degraus pelas nossas famílias. Aprendemos muito cedo a ver coisas diferentes em casas diferentes e a aproveitar essa diversidade em nosso benefício. Os nomes ficavam nas cadernetas do professor. Para se ser alguém no bairro, bilhete de identidade urbano, era preciso ter uma alcunha, uma espécie de nome de guerra, sem o qual a nossa existência pura e simplesmente seria ignorada. Ninguém saberia dizer a um gajo de fora quem era o Artur. Mas toda a gente conhecia o “Cara de Urso”. E, quem diz “Cara de Urso”, diria o “Olhinhos”, o “Estufa”, o “Carga de Ossos”, o “Pentes”, o “Osga”, a “Toupeira”, o “Riquinho”, “Sapo”, a “Patchouli”, o “Marinho Picareta”, o “Boneca”, o “Bichinho”,os irmãos ”Titó”, a “Escova”, o “Tiques”, o “Facadas” e o “Bicos”, só assim de repente.
Mas deixemo-nos de seriedades urbanísticas e mergulhemos s fundo na grande, na única questão que interessa: o ar do bairro. Talvez por beneficiar de uma localização privilegiada (todas as saídas eram para baixo) num planalto vizinho ao Vale de Alcântara, talvez por ser habitado por muitos artistas, o certo é que o ar ali era estranho. Um ar como não se consegue encontrar em mais lado nenhum (talvez nos Olivais) que desenhava três malucos em cada cinco habitantes, gerava verdadeiros criadores em todas as áreas e fazia de cada dia um pretexto de surpresa e de festa. Havia mesmo rituais de bairro como, por exemplo, mandar recados de uma ponta para a outra da rua, mas a cantar.
Imaginemos que um gajo acordava de manhã e abria a janela. Lá em baixo na rua via um conhecido a andar no passeio, atrasado para o trabalho. Imaginemos que era o “Bichinho” Abria a janela e cantava a sua saudação matinal: “O Bichinho ééééé rôôôôtoooo!” Atrasado para o trabalho, mas incapaz de responder a tão bela abordagem à sua pessoa, o “Bichinho” abrandava o passo e virava-se na direcção da voz. Punha as mãos nas ancas e respondia, qual ave madrugadora que saúda o Sol: “A p….. da tua mããããããããããee!
Artur
3 comentários:
Grande texto!
Sabes o quão ' mitra ' eu sou .. um Olivalense de alma,corpo e vida!
Imagino-te nas ruas de ' Chã d'ouri'.. e vejo-te chaval rebelde.
Acho que ambos podíamos ter feito uma perninha na juventude um do outro !
Carlos,
Obrigado, Boas férias. 1 abraço
Red,
Olivais e C. de Ourique...aldeias geminadas de força de vida, originalidade,arte e rebeldia. Abraço.
Artur
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