sexta-feira, 6 de junho de 2008

A PONTE


THE BRIDGE
Eric Steel
EUA, 2006

Figura mágica no quotidiano dos homens, uma ponte, qualquer ponte, traz consigo o fascínio da ligação, possibilidade de comunicação, travessia de obstáculo natural, comunhão de margens opostas pela separação. Para além disso, o imaginário humano tem um departamento inteiro dedicado às pontes no mundo infinito das histórias.
Vem tudo isto a propósito de um documentário inspirado num artigo publicado na revista The New Yorker (“Jumpers”) em 2003, da autoria de Tad Friend. Impressionado com o quadro de suicídios registado na ponte Golden Gate em S. Francisco, Eric Steel decidiu contar a(s) história(s) destes indivíduos. Para isso, ele e a sua equipa distribuíram várias câmaras em volta da ponte para obter outro tanto de ângulos de filmagem possíveis ao longo do ano de 2004. Dos 24 suicídios ocorridos nesse ano na ponte de Golden Gate, 23 foram registados no documentário. A brutalidade das imagens causa no espectador um impacto terrível, principalmente por serem reais. E esta questão só por si é capaz de gerar, como gerou, enorme controvérsia. Qual é a fronteira da exibição da realidade? Não será um pouco mórbida esta procura quase abstracta da tragédia alheia para fins de reprodução de imagens? Haverá uma barreira moral ou estética para a exibição da morte ao vivo? Não nos parece. E por uma quantidade de razões que a seguir se indicam.
Em primeiro lugar o documentário não se limita ao acompanhamento dos “potenciais” suicidas. As imagens são intercaladas com depoimentos de familiares e amigos das vítimas, de testemunhas presenciais dos suicídios, bem como de um sobrevivente de uma queda de cerca de 70 metros de altura para as águas da Baía de S. Francisco. Todos os depoimentos foram recolhidos sem a prévia informação de que os suicídios haviam sido filmados. O projecto manteve-se em segredo durante as filmagens para evitar que alguém tivesse a “brilhante” ideia de “imortalizar” a sua morte em filme. Mais tarde, terminado o filme, ele foi visionado por todos os intervenientes entrevistados que nada opuseram à sua exibição.
Por outro lado, existe uma força de vigilância permanente na ponte que está normalmente atenta a comportamentos estranhos das pessoas que a atravessam e que intervém rapidamente, ajudando a salvar a vida de muitas delas. Nas palavras de um desses elementos, os casos de suicídio ou de simples tentativa, são o “dia-a-dia” naquela ponte que, para além de dois passeios pedestres ao longo de toda a sua extensão, pouca ou nenhuma barreira tem, destinada a prevenir aqueles comportamentos. Qualquer um consegue facilmente saltar o parapeito e ficar do lado de fora da ponte.
No decorrer das filmagens, em cada 2 semanas houve uma pessoa que saltou da ponte. Se essa frequência for constante, isto significa uma média de 24 suicídios por ano.
Steel tenta registar e entender o que leva um ser humano a terminar voluntariamente com a sua existência e, em vez de uma, chega a várias conclusões. A violência das imagens, constituída pela cruel realidade e pelo instantâneo da atitude, é-o essencialmente pela banalidade do acto em si. Pessoas com uma vida “normal”, pessoas que ainda ontem riam, pessoas…como nós.
Vivemos num mundo repleto de equívocos e árido de sentido. Escondemos o suicídio com algum pudor mas não hesitamos em explorar à exaustão um homicídio violento. Se há alguma morbidez na feitura deste documentário, que dizer então de todas as imagens trágicas que nos bombardeiam os telejornais todos os dias? A fome em África, as guerras encomendadas, as tragédias naturais, etc,etc. Qual é a barreira moral ou ética que se poderá erguer neste registo? Nenhuma, digo eu. Dizia um pensador alemão do século passado que “ o suicídio é património da Humanidade”. Será talvez a última fronteira de morte onde a nossa vontade tem um papel decisivo e único. Não se deverá louvar nem encorajar, e muito menos condenar porque faz parte da intimidade de cada um. Mas é forçoso compreender que existe, é uma realidade intrínseca à nossa natureza por mais que a queiramos varrer para debaixo do tapete. Tal como as crianças violadas dentro do ambiente da família, os velhos depositados em lares degradantes e outras tantas habilidades que nos aproximam do estatuto de monstros…
Caminhamos pela estrada da existência como todos aqueles que atravessam a ponte. Uns para desfrutar da paisagem, outros para satisfazer o seu apetite turístico, outros para fazer desporto, tirarem fotografias, e outros para morrer.
A Golden Gate Bridge é uma das atracções turísticas mais visitadas do mundo. Uma ponte, um gigante de aço que liga duas margens sobre uma baía. Uma união de Natureza e engenharia humana. Um fronteira entre a Vida e a Morte…

ARTUR

3 comentários:

Anónimo disse...

Puxa Artur, este texto foi brutal... escrito com a sensibilidade que a morte pede. Não conheço esse documentário e adoraria vê-lo. A "nossa ponte" também é um trampolim para a morte, vários suícidios ocorrem lá anualmente, não são divulgados pela comunicação social porque está provado que falar deles motiva potenciais suícidas. Muito interessante este tema. Adorei o texto, mesmo !!
Beijos

Artur Guilherme Carvalho disse...

Sara: Obrigado pelas suas palavras. O documentário em questão está à venda na FNAC. Julgo que foi exibido pela 1ª vez no último Festival de Cinema Documental ( não tenho a certeza). Já me ocorreu em tempos a feitura de uma coisa semelhante na ponte sobre o Tejo, só que o assunto em questão seria em torno das múltiplas actividades ( e pessoas que as compõem) que mantêm viva a vida da ponte( limpeza, manutenção técnica, portageiros, brigada de trânsito, etc). Assim, já não vale a pena porque seria copiar uma ideia de outro. Volte sempre.
ARTUR

Anónimo disse...

Artur, é uma óptima ideia, nem sabia que estava ao seu alcance tal coisa. Dou-lhe a maior força.. .não desista, seria mesmo interessante assistir a esse documentário versão "25 de Abril". Quanto ao plágio...não pense nisso, encare o documentário original como uma fonte de inspiração, viu...gostou...e teve vontade de fazer algo parecido, tantas e tantas obras se inspiram noutras, right??
Beijos