sexta-feira, 9 de maio de 2008

MAIO DE 68


Quando exigimos o impossível há sempre duas coisas que acontecem. Primeiro, falhamos o objectivo principal. Segundo, nada fica como dantes. Ainda hoje, 40 anos depois, ninguém consegue explicar de uma forma suficientemente convincente, como é que uma simples reivindicação estudantil se transforma num protesto generalizado, dá origem a uma greve geral e paralisa durante algum tempo todo o aparelho de Estado e respectiva organização económica. Ninguém conseguiu explicar como é que o protesto e a revolta se espalharam rapidamente como um rastilho por toda a sociedade francesa, tendo como protagonistas principais um grupo de ideias até aí marginais, fora dos tratados de sociologia e dos cânones marxistas. E ninguém consegue explicar porque esse foi o seu primeiro encantamento, a primeira grande virtude de tudo o que aconteceu nesse tempo: a surpresa.
Maio de 68 marca de entrada uma ruptura. Ruptura com o poder estabelecido, ruptura com os primados doutrinais, ruptura com a cultura institucional, contra todo o tipo de ordem e hierarquia, em suma, contra todo o tipo de autoridade. Por oposição ao Poder exprimiu-se a Vontade. Vontade de mudar, vontade de não ficar na mesma, etc. À História dos acontecimentos opõe-se a História das ideias, ou do pensamento. As estatísticas de uma Sociologia anónima, impessoal e distorcida de realidade e o Estruturalismo até aí triunfante, sofrem um rude golpe. Maio de 68 anunciou o regresso ao sujeito, ao indivíduo, ao facto e à História.
De um momento para o outro todos reclamam, invadem a rua, protestam, enfrentam as cargas policiais para dizer que era preciso mudar, estimular a imaginação, transformar a pacatez rotineira dos dias. O paraíso vendido até aí numa mágica mercantil e rotineira tinha de acabar. A História a isso obrigava.
Combatia-se todo o tipo de autoritarismo, fosse do lado capitalista, fosse do lado estalinista soviético. O poder era reclamado na rua com as pedras da estrada. Políticos, sindicatos e profissionais dos movimentos sociais em geral, são apanhados desprevenidos e só lhes resta saltar para o comboio dos acontecimentos já em andamento. Marxistas, trotskistas, maoistas e anarquistas, todos fazem ao mesmo tempo parte de uma força que nunca conseguirão enquadrar. A estrutura tradicional da organização, dissolvida por um movimento sem formas precisas, multiforme, maleável, que se vai adaptando ao desenrolar dos acontecimentos emitindo respostas subversivas, está dispersa, estilhaçada em pequenos e múltiplos comités que gerem um espaço político fragmentado.
Deixa de haver poder, oculto ou oficial, porque se produz sozinha, de uma forma brutal, uma ruptura na normalidade da razão, seja ela política, económica ou cultural. Neste aspecto é relevante a tentativa sistemática de, ao longo dos anos minimizar ou anular por completo a significação do que foi o Maio de 68. À esquerda e à direita sucedem-se as inteligências bem falantes empenhadas na sua missão de apagar aquilo que não conseguiram controlar, ou melhor dizendo, aquilo que foi bem sucedido...
A desagregação temporária de todo o tipo de ordem, através de uma revolta espontânea de grupos até aí marginalizados ou simplesmente esquecidos pelo poder instituído, composta por estudantes, artistas e operários, não foi mais do que um fenómeno recorrente nas sociedades, perfeitamente registado nos anais da História, embora ninguém faça questão de o apreender. Quando de repente há milhares de cidadãos nas ruas em protesto, não se trata de uma droga estragada comercializada nos dias anteriores. As sociedades, fruto de uma complicada teia de tensões permanentes, funcionam como panelas de pressão. Se a válvula reguladora não estiver operacional, a pressão acumula e estoira. Maio de 68 foi apenas mais uma explosão, nem a primeira , nem a última. O carácter libertário e utópico dos seus contornos sociopolíticos reforça a sua ideia reparadora da válvula de pressão.
Há no ser humano um carácter de formiga decorrente da sua contingência gregária que o faz pertencer ao carreiro, a uma estrutura de trabalho e produção. Dessa forma evita a solidão aniquilante e conquista a segurança necessária que lhe resgata o sentimento omnipresente de pertença. Mas há também outrotanto no ser humano que o separa desse sentimento. Trata-se da afectividade, o direito ao bem-estar, ao lazer, ao seu corpo, da não aceitação passiva da autoridade que o submete e excluí enquanto agente de vontade, numa palavra, do direito a si próprio. É no equilíbrio frágil entre estas duas dimensões que correm os nossos dias. A submissão à ordem é sempre um estado temporário entre momentos do despertar da consciência.
E em Maio de 68 ela voltou a acordar. Não se inventaram novas ideias nem se concretizou nenhum tipo de pensamento de continuidade do movimento. Primeiro porque a maior parte dessas ideias já existia, embora num contexto reprimido e marginalizado. A partir de Maio de 68 encaixaram-se no discurso oficial para já não voltarem a saír. Os direitos de igualdade entre os sexos, da emancipação das mulheres, dos homosexuais, o amor livre, o aborto, o pensamento ecológico, etc, se hoje são realidades do quotidiano, até aquela altura não o eram. O movimento foi como uma brecha aberta na parede da sociedade que os permitiu atravessá-la para o lado de dentro. Por outro lado o carácter anti-ordem e anti-autoritarismo do movimento, para além de obrigar a França a convocar eleições gerais e a fundar uma nova República, provocou ondas de choque sentidas desde a Primavera de Praga até às comunidades espirituais e do amor livre da Califórnia, passando pelo espírito do 25de Abril no nosso país.
Como é evidente, a Utopia é tudo aquilo que ainda não se conseguiu fazer. Mas que é possível. Maio de 68 cumpriu a sua vocação utópica na medida em que forçou uma série de acontecimentos, e instituiu novas formas de existência. Não há um pensamento tipo Maio de 68 pela simples razão que ele se extinguiu em si próprio. Como é próprio de todos os movimentos utópicos. O que os seus protagonistas vieram a fazer no futuro ou aquilo em que se transformaram já não é da sua responsabilidade. A Utopia cumpriu a sua missão. Ou, nas palavras de Edgar Morin: " Sabemos agora que a razão, se fôr razoável, deve admitir que não pode racionalizar tudo: a razão deve pôr em causa a razão ( Adorno já o tinha feito nesse belíssimo texto intitulado "Autodestruição da Razão")... Creio que aquilo que aconteceu em Maio de 68 tem um valor significativo muito forte. Vivemos numa sociedade sem capacidade de se regenerar nem política nem culturalmente. As forças de regeneração nascidas em Maio, acabaram por degenerar. E a degenerescência dessas forças vai abrindo espaço àquilo que fazia parte do passado...até à próxima explosão."
ARTUR

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