Décimo sexto dia do quarto mês de dois mil e vinte cinco.
Este é o mês preferido do ano preferido porque é neles que estou. Não há dia em que não festeje a liberdade ou que não me debata pela falta dela. Voltei a ver notícias e nem lamento não estar surpresa pela desesperança instalada no planeta, no entanto, e cada vez mais, tenho mais esperança em cada um de nós, no contágio das coisas boas e na expansão dos corações amorosos. Tenho dado espaço à doçura que habita em mim desde sempre e tenho-a deixado fermentar lentamente à temperatura do meu peito. Sou a prova viva de que é possível ser paz em tempos de guerra, ser cómica em dias tristes, ser mentira perante a violenta verdade da agressão, seja ela de que natureza for. Muitas vezes dou por mim a rir à gargalhada quando ouço comentários simpáticos sobre qualquer agressor:
- Tão educado!
- Muito bem disposta!
- Oferece-nos sempre o café.
- Todas as semanas nos oferecia ovos.
- É tão asseada.
- Sempre com uma palavra gentil.
Só podendo usar os meus exemplos que foram mais do que desejaria para alguém, gostaria de reforçar que é sempre assim. Só dentro do seu ambiente é que se revelam. Seja por estar um objeto fora do lugar pretendido, por falares com alguém tempo demais, por olhares para outra pessoa, ou por expressares a tua opinião contrária à dele. Marcas físicas atrozes, em mim, só em 1988, quando uma vassoura pousou nas mãos dum namorado da altura e despencou nas minhas costas. O rapaz era tímido e educado mas não estava contente porque eu ia para Montreal durante três meses. Resolveu expressar a sua indignação na véspera da partida, no meio duma festa de carnaval, enquanto conversávamos no jardim. Para me proteger só tive tempo para me fechar em concha sobre um arbusto. A vassoura tinha um cabo de madeira e perdi a conta das vezes que bateu nas minhas costas. Pela primeira vez na vida não contei nem à minha mãe o que me tinha acontecido. No avião fui sentada na beira da cadeira sem nunca me encostar. Cheguei a Montreal e tinha o meu amigo Marcel à espera. A namorada dele era socióloga e trabalhava num centro de socorro a mulheres espancadas. Depois de ver a peça de teatro que as crianças tinham preparado para mim, chamei-os à parte e contei. Pela primeira vez vi o tamanho das minhas dores quando as mostraram ao espelho. Vergões vermelhos,roxos e negros da nuca até à base da coluna. Dez, quinze, sei lá. Uma mão cheia de amigos cuidaram de mim e foram o maior bálsamo que poderia ter para qualquer dor ou ferida.
Falei com a mãe ao telefone. Lembrei-lhe duma conversa que costumávamos ter em que ela me dizia que a falta de amor tem consequências físicas, para eu não levar a mal, mas para me retirar a tempo.
Foi o que fiz, mamã.
É o que faço, meu amor.
Aprendi com o tempo que serei sempre uma presa fácil se não me retirar a tempo. Aprendi também a ler a agressividade antes dela acontecer. Aprendi as medidas de antecipação e o tamanho da minha fragilidade. Aprendi que a agressão psicológica é muito maior do que qualquer vassourada. Aprendi e continuo a aprender que o silêncio e o isolamento são os nossos maiores inimigos. Aprendi que os amigos não merecem ser os nossos terapeutas porque nos amam e por isso temos que procurar ajuda técnica para nos curarmos.
Aprendi que nunca perco a esperança, que adoro a natureza humana no seu melhor e que a desprezo no seu pior. Continuo a aprender que não há dor que deva ser ignorada, nem amor que deva ser calado.
E, só agora, estou a aprender a amar-me.
Elsa Bettencourt