segunda-feira, 10 de julho de 2023

AUTORETRATO DO ESQUECIMENTO E DAS COISAS QUE ME ALEMBRAR


A espuma cuspia-me na cara mesmo com a proteção dos braços da minha mãe. O meu peito ressoava mais forte do que as ondas lá embaixo contra as rochas e contra o casco.
O barco içado pelo guindaste no cais molhado balançava ao ritmo do vento forte. No intervalo das rajadas ficava o frio do medo e do tempo, e a esperança do chão aproximava-se lenta, custosa e incerta. Quando a terra finalmente aconteceu, o cheiro a vomitado ficou para trás e os gritos de alegria sobrepuseram-se aos de agonia.
Os credos passaram a bênçãos, os braços que me seguravam antes elevaram-me ao céu em agradecimento ao Espírito Santo.
- Benzá Deus!
Gritavam as vozes agradecidas entre choro e alegria.
Minha mãe procurou um lugar seco, juntamente com as onze famílias que iam seguir viagem, para nos enxugarmos e apanhar um carro de praça até ao Terminal. A pobreza era sinónimo de humildade e asseio, e não íamos entrar num carro para sujar os bancos com indisposições e água do mar.
Uma barra de sabão azul e branco, uma fralda de pano com outro uso de tão puída por ele mas seca e molhada nas gotas que caiam dos beirais. Uma muda de roupa vinda da terra para onde íamos e estávamos prontos para continuar viagem. Meu pai compôs os meus dois irmãos maiores com o pente que trazia na algibeira, uma réstia de sabão molhado para prender os fios de cabelo que teimavam em eriçar-se. Deixou-se para o fim na manobra dos asseios usando o resto do resto de sabão e as gotas que terminavam de pingar.
O cabelo rijo e negro ficou brilhante como os calhaus da ribeira cheia em dia de irmos lavar a roupa.
Quando pus os pés no chão já estava calçada com as botas que nos tinham mandado no barril da América. Eram dois números acima mas aguentavam-se nos meus pés graças às folhas de jornal que faziam de palmilhas. Meu irmão acima de mim estava pior porque, além de não estar habituado a sapatos, os dele eram um número abaixo. Não engordamos com papas de carrilho mas crescíamos de tamanho e de pés.
Meu pai levantou os olhos para olhar nos de Jaime que começava a ficar afogueado com os apertos e não precisou dizer nada. Fez-lhe uma festa na cabeça a endireitar a mecha de cabelo que fugia para a testa e pôs-lhe a mão no ombro. Meu irmão Joaquim, onze meses mais velho, pôs-se ao lado dele, disse-lhe um escuto, pôs-lhe a mão no outro ombro e agarrou na mão de minha mãe que segurava a minha.
O carro de praça chegou e sentamo-nos todos atrás.
Meu pai arrumou a mala pequena que ia pela metade com tudo o tínhamos e sentou-se ao lado do condutor simpático que nos levou ao aeroporto.
Eu, Maria José, tinha cinco anos, meu irmão Jaime, oito e Joaquim em breve teria nove.
-Parece que já estamos na América! Mas pechinchinha!
Dizia o condutor.
-Os americanos deixaram estas lembranças aqui para termos vontade de continuar até à América maior.
Subimos a estrada da Birmânia a arregalar os olhos pelo caminho fora do Açucareiro até ao Terminal, passamos por casas de lata pintadas de branco cor de farinha, outras compridas como metades de tubos gigantes com jardins cheios de flores e erva verde que só tinha visto nas pastagens da minha ilha mas sem vacas à vista.
Em frente à piscina o senhor José abrandou ainda mais para vermos melhor. Passamos um edifício grande de madeira e por rapazes a correr para ele, todos vestidos de branco, a vir da piscina mais acima, duma prova de mergulhos que estava a acontecer. Olhamos à direita logo a seguir e, apesar das luzes ainda não estarem acesas e de eu não saber o que era luz elétrica senão mais tarde, pasmamos.
-Cinema! Gritaram Jaime e Joaquim ao mesmo tempo.
-Mêpai, está uma senhóra naquele vidro que parece nhamãe.
O condutor José parou para me dar razão.
-A pequenina tem razão. Parece a sua senhora já americana. Com os cabelos ripados, um sorriso parecido pintado de vermelho cereja.
Já não sentíamos a humidade no corpo e quando olhei para minha mãe ela sorria como a senhora do cartaz.
- Se os senhores se não se importarem, e como este é o meu último serviço, gostava de os convidar para um prato de sopa em minha casa. A minha senhora já deve ter a mesa posta.
O avião é depois de amanhã e os senhores precisam descansar e ganhar forças para essa viagem tão comprida.
O Terminal está cheio de famílias a dormir pelos bancos e eu gostava que a vossa família ficasse com a minha. Ao menos uma há-de descansar melhor do que as outras. O quarto da minha falecida mãe está vazio e tem espaço para os senhores e para os pequenos.
Sempre é melhor do que os bancos duros da espera.
Assim foi. Meu pai, Jeremias Figueiredo,homem de poucas palavras e de muito trabalho, sempre ajudou quem pode apesar de não termos nada e minha mãe ajudava-o sempre a repartir o nada por todos, deixando-se sempre ficar para o fim até adormecer de estômago vazio, dia após dia, noite após noite. Salgava os peixes que a gente pescava no calhau da nossa ilha até ao último grão de sal, nos dias de verão. Cozia pão quando recebia farinha em troca dos seus serviços de costura e empregada de quartos na casa grande.
Era tudo muito pouco, o sal, a farinha, os peixes, o conduto. Os escudos eram uma visão rara que passavam da mão dos senhores para a mão de meu pai que os dava a minha mãe, que por sua vez ia pagar o fiado à loja e voltava com nada.
Quando chegamos a casa do tio José, a sua senhora também Maria como minha mãe e eu, parecia que nos esperava.
Não havia telefones mas ela conhecia o homem que a escolheu para mulher desde os bancos de escola.
Protegia-a das reguadas do professores de todas as formas possíveis, até errando de propósito para malharem nele em vez de malharem nela.
Aquela família parecia a nossa. Quando dei por minha mãe já estava na cozinha a ajudar a senhora Maria comigo agarrada à saia dela, a tirar pratos, a juntar água à sopa, a partir pão. Nunca tinha visto uma torneira que não fosse a da fonte onde íamos buscar água em púcaros para encher o talhão feito do barro de Santa Maria. Lavei as mãos na pia da cozinha e não parava de cheirá-las enquanto faziam tanta espuma como as nuvens do céu.
A luz daquela casa e daquele lugar que se chama Aeroporto, não vinha da chama das candeias, das velas, ou dos candeeiros de petróleo. Vinha pelos fios e chegava aos globos de vidro que brilhavam como pequenos sóis. Estávamos todos pasmados por tudo o que nunca tínhamos visto mas eu era a única a abrir a boca o mais que podia, até a minha mãe me segurar no queixo,
empurrando-o devagarinho para cima com o indicador.
Meus irmãos estavam contidos pelo olhar de meu pai enquanto ajudavam o senhor José a acartar cobertores para fazerem camas no chão.
-Mêpai vê-se tudo lá fora como se fora quase dia e ainda falta para chegar a manhã.
Dizia Jaime.
-Mêpai esta luz é mais forte que a do candeeiro de petróleo da nossa casa e nunca se acaba.
Dizia Joaquim.
Ti José falou por ele.
- Na vossa próxima casa, com a graça de Deus, a luz será assim, a água vai correr assim, a comida não há-de faltar, nem a saúde, nem a união desta vossa família.
Os pés vão caber nos sapatos e a roupa há-de ser à medida.
Nosso senhor não nos deu filhos para podermos acolher os que por nós passam como se filhos fossem. O que eu aprendi com o meu avô foi de ouvir da boca de meu pai. Só se pode aprender ouvindo com atenção e com o coração. Eu ensino a quem passa, como um pai a um filho que sabe ouvir e aprendo com quem ensino que estamos no caminho certo.
Há muitos caminhos errados e um único certo que é o do bem. A luz que ilumina as nossas famílias é maior do que a que ilumina estas casas ou o caminho lá fora. Está cá dentro de nós e é esta que nunca se apaga dentro do caminho certo.
-Obrigada Ti José, seja pela sua saúde e dos seus.
Disse Mêpai.
- Agora vamos comer que vocês devem estar esganados e eu também. E muito mais cansados do que eu.
Nhamãe deu graças pelo abrigo e comida, eu acrescentei graças pelo vinho doce e pela bondade dos novos tios. Depois do Amen as colheres começaram a ouvir-se e Mêpai, do outro lado da mesa, levantou os olhos para meus irmãos e pra mim.
-Bem sei, Mêpai desculpe, mas está mesmo poderes de bum.
Quase adormeci à mesa à medida que a barriga se enchia de canja de peixe. A minha cabeça já tombava para dentro do prato quando Mermão Jaime a segurou e Mermão Joaquim me amparou.
-Zézinha já come e sonha e antes só sonhava que comia.
De certeza que ainda não estamos na América?
Disse Jaime
- Zézinha mais a gente, atravessamos o mar bravo até chegar aqui. Já vimos mais nestas duas horas do que na vida toda!De certeza que ainda não chegamos à América?
Disse Joaquim.
Meus irmãos seguiam o pensamento um do outro como se gémeos verdadeiros fossem. As palavras e as frases trocavam-se e completavam-se. O gosto pela leitura foi passado pelo senhor padre da nossa freguesia em troca de ajuda na missa e dos arranjos nos paramentos que Nhamãe fazia. Aprenderam a ler num ai para me contarem as histórias dos santos e lerem as cartas que Mêtio Jebedias mandava da América.
O galo escondido cantou o amanhecer e meus pais já não estavam na cama. Meus irmãos dormiam a sono solto e eu gritei por minha mãe:
-Nhamãe onde é que estou?
-Nhamãe onde é que está?
Minha mãe estava nas traseiras da casa com tia Maria a estender roupa debaixo dum sol que nunca mais senti assim. O calor naquele lugar vinha perfumado de poejos e hortelã.
A tia tinha molhos de ervas amarrados e dependurados num telheiro que filtrava a luz às fatias e os secava entre a sol e a sombra. Mal vi a água na pia da roupa e senti o cheiro de sabão azul e branco, atirei os braços lá para dentro para lavar a cara.
-Vais lavar-te com a roupa, Zézinha?
Perguntou a tia ao mesmo tempo que me içava com os seus braços e fazia jeitos de me aboiar para todos os lados.
-Esta está bem “bua”,tia Maria!
E lá fui eu já em coiro, de cabeça, até me puxarem pra cima.
Elsa Bettencourt.
Conto escrito para a Associação Daniel de Sá há alguns anos e que nunca enviei por estar sempre a fazer coisas pelos outros. Agora é por mim e pela minha ilha mal lembrada. Aquela que até o verão se esqueceu.

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