sábado, 12 de novembro de 2022

CAMINHOS DE SILÊNCIO


 


Se insistirmos em falar com o passado, apesar de surdo e distraído, há sempre um dia em que ele acaba por nos responder. Umas vezes não dando a resposta que esperávamos, outras trazendo memórias tão óbvias que nunca nos teriam ocorrido se não falássemos com ele.

Ao fim de uma vida intensa por esse mundo fora, repleta de lugares e pessoas diferentes, Rodrigo viu-se de novo na sua cidade de sempre. Mas a cidade já não era a mesma, tinha partes inteiras que não conseguia reconhecer. As ruas estavam apinhadas de gente, trânsito, ruído. Não se conseguia entrar normalmente num restaurante, numa loja, andar pela rua sem deparar com multidões em todas as direcções como enxames de insectos. A cidade onde sempre viveu definitivamente já não lhe pertencia. Vistas bem as coisas, se quisesse colocar a questão de uma forma global, já nada lhe pertencia. Só ele a si próprio e mesmo assim, temporariamente. Por isso falava com o Passado. Lembrando-se, avaliando, julgando, mantendo um diálogo morno consigo enquanto o conseguisse escutar. Interrogava-o nos livros que lia, chamava por ele nos breves instantes antes de adormecer à noite, reconstruia memórias cheias de espaços vazios que não conseguia preencher.

Decidiu mudar-se para uma casa no campo, herdada de uma tia recentemente desaparecida, e estabelecer a partir daí a base dos seus dias. A política de rescisões e despedimentos da empresa em situação económica difícil permitiu-lhe um estatuto de pré-reforma devolvendo-lhe o tempo que nunca tinha enquanto trabalhava. A profissão, a ex mulher, os filhos e até a cidade onde sempre viveu já não lhe pertenciam, mas em contrapartida passou a ser dono do seu tempo e da sua rotina. Uma nova ordem erguia-se sobre as cinzas de uma ordem anterior. A velocidade abrandava, as obrigações diminuíam e os dias, finalmente, pertenciam-lhe. Passou a dar longas caminhadas pelo campo fora, que normalmente iam dar ao castelo onde tantas vezes brincou na sua infância acompanhado pela Moody, uma “pastor alemão” de meia idade que o seguia como uma sombra. Usando horários onde encontrasse menos visitantes entrava ou ao amanhecer ou ao fim do dia. Depois escolhia um lugar para se sentar e ficava por ali alguns minutos a contemplar o céu.  Fechava os olhos e tentava imaginar o castelo em outros tempos. As vozes dos habitantes, os cascos dos cavalos, o bater metálico do ferreiro ao longe. Quase sem dar por isso passou a tirar uma fotografia do interior das muralhas todos os dias. Ou de manhã ou ao entardecer. Depois à noite seleccionava as melhores imagens e publicava-as num blogue que tinha construído para o efeito. Em cada dia uma entrada. O Sol através das ameias, uma janela de pedra aberta sobre o horizonte, tudo servia para preencher este seu novo hobby.

Foi após uma noite mal dormida que algo de novo aconteceu. Levantou-se e saiu de casa pouco antes do amanhecer com a Moody atrás a farejar todos os recantos do caminho, reclamando do sono interrompido e do pequeno-almoço que ficou para mais tarde. Entrou no castelo quando o Sol já se fazia notar no horizonte e subiu por umas escadas que levavam ao topo da muralha. Continuou a andar até que encontrou a imagem daquele dia. O desenho de uma janela em ruínas virada a Oeste estava ali, teimosamente erguida no vazio como último testemunho de uma estrutura outrora completa, inteira. Esperou um pouco e preparou a câmara. Deixou o Sol passar para a base do parapeito e disparou várias vezes. A meio ouviu um rosnar da cadela mas não lhe ligou. Foi logo a seguir ao momento em que julgou ver uma sombra, ou um vulto ou qualquer coisa do género do lado superior esquerdo do enquadramento. Mais tarde já em casa ao rever as imagens percebeu que não tinha sido só uma impressão. Era a sombra de uma cabeça de mulher. Cabelos compridos e um resto de rosto. Resolveu ampliar, reenquadrou, brincou com o contraste, inventou. No fim conseguiu construir um rosto sereno de uma mulher nova, de cabelos ruivos e ondulados numa expressão tranquila. Um sorriso meigo por baixo de um olhar doce, uma expressão de saudação a alguém que reconhecia. Primeiro ficou curioso, depois deixou-se perturbar. Por fim encarou tudo aquilo como uma viagem qualquer das muitas que tinham feito parte da sua vida. Outros lugares, outras gentes, outras latitudes, outras realidades. Talvez um soluço quântico do universo na hora de nascer o dia. Talvez um encontro de impossibilidades que se tornou real numa fracção do tempo. E que aconteceu, sobre isso não restavam dúvidas. A imagem registada e o rosnar da cadela assim o indicavam.

Nessa noite sentiu um cansaço muito grande e resolveu deitar-se cedo. Sonhou a noite toda, andou por várias paragens até que foi parar outra vez ao castelo. Estava numa enorme sala de decoração medieval e envergava uma capa branca. Estava cansado mas satisfeito. Ao fundo o dono do castelo recebia a sua mulher após uma longa viagem. Nesse momento percebeu que aquela mulher era a mulher que a tecnologia o havia ajudado a desenhar no computador. O cabelo longo e ruivo, o sorriso meigo e a expressão tranquila. Observava toda aquela cena apoiado na sua lança de cavaleiro. De repente a mulher notou a sua presença. Olhou para ele e acenou com a cabeça sorrindo. E nesse instante percebeu que a tinha escoltado até ali enquanto seu guarda pessoal. Que a sua função era garantir a sua segurança ao longo daquela jornada. E por fim, percebeu também pelo mexer dos lábios dela que lhe agradecia o seu empenho e a sua tarefa que terminava naquele dia. Quando acordou decidiu transformar todo aquele cenário numa breve alegoria. A de ter conduzido a sua existência até àquele tempo e de ter desempenhado a sua tarefa de forma satisfatória. Pelo menos havia alguém que lhe agradecia o esforço. Alguém que reconhecia o bom desempenho da tarefa. Nem que esse alguém fosse um vulto indiferenciado ao amanhecer que as várias modalidades da tecnologia transformassem numa possibilidade real de um ser efectivo.

 

Artur


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