quarta-feira, 18 de maio de 2022

DA SABEDORIA EM GERAL


 

“A Sabedoria edificou a sua casa, lavrou as suas sete colunas.”

Livro dos Provérbios, IX.I

 

Para perceber é preciso tempo, diria alguém mais velho ou mais sábio a alguém menos entendido. Ou talvez não. Talvez aqueles quem têm alguma coisa a dizer, algum conselho a dar não sejam exactamente homens sábios. Talvez sejam simplesmente “sabedores” em vez de sábios, tipos que relatam partes do caminho a quem chega lá de trás e ainda não o conhece no local em que se encontra.

 (ganda seca, até faz lembrar a entrada daquela famosa série “Lin Chung O Justiceiro” do final dos anos 70, onde cenas colossais de pancadaria eram interrompidas por citações de Confúcio ou de um outro sábio qualquer para grande azar do espectador adolescente que queria era ver acção, isto é, tareia da boa)

Talvez essa espécie de pessoas (os sábios) sejam tipos de uma fibra diferente que faz passar a sua mensagem de todas as maneiras menos através da palestra, do conselho, da aula. Talvez sejam tipos capazes de com um breve apontamento, uma história, uma alegoria, conseguir fazer passar um tratado de conceitos, filosofias, aspectos existenciais que o receptor consegue apreender com rapidez e evoluír mais um bocado no seu trajecto.

(Por acaso, nos tempos que correm não faço a mínima ideia do que será bom senso, lógica determinativa, evolução, desenvolvimento no que à nossa espécie diz respeito. Para onde vamos, o que é que andamos aqui a fazer, quem é que apagou a luz, como é que tudo é desprovido de sentido são as questões que mais me assaltam quando me lembro do sítio onde estou).

Devo ter conhecido dois ou três sábios ao longo da minha vida. Um deles, o padre Viana, era um jesuíta que passou três anos na paróquia da área onde eu morava em miúdo. De manhã levantava-se e empurrava a estante dos livros até à janela aberta porque entendia que eles precisavam de apanhar ar. Ao fim da tarde voltava a empurá-los de volta ao sítio original. Era o recordista das confissões (actividade que detestava). As velhas de sempre mal tinham tempo de se ajoelhar já eram bombardeadas com a penitência e a absolvição e toca a andar que ele tinha mais que fazer. Era um erudito, dava aulas de Teologia na Universidade e o seu mundo era o estudo, o conhecimento e a espiritualidade. Não julgava, não criticava nem impunha. Limitava-se a responder acerca daquilo que lhe perguntavam, a executar a sua tarefa profissional de forma institucional sem se deixar envolver. Eu, como outros do bairro, rapidamente nos rendíamos aquela figura peculiar de padre do conhecimento, muito mais empenhado em explicar os mistérios do universo do pensamento do que em impor condutas, julgar comportamentos, elencar o caderno dos castigos para aqueles que se portavam mal. Às vezes era visto à noite em passada larga à volta da igreja a apanhar ar antes de ir dormir. Um autêntico comboio a deitar fumo do seu cachimbo ao qual nos juntávamos por vezes. Nessas voltas eternas em torno da igreja falava-se de tudo e de nada. Nenhum tema era incómodo para ele. Temas da actualidade social e política, temas de outras religiões, espiritismo, fenómenos estranhos, Filosofia, História, etc.  De vez em quando uma pausa para contemplar a margem Sul do Tejo e o Seminário de Almada onde tinha feito os seus estudos antes de ingressar na Ordem. Recordava as tardes de jogatinas de futebol ao fim de semana e da alegria que isso lhe dava. A vontade de rir a correr com mais vinte alunos de batina até aos pés e sapatos de trabalho, dado que era proibido o uso de calções ou camisolas adequadas à prática desportiva. Graças ao padre Viana fiquei a saber os clássicos gregos com uma ótima nota a Filosofia no fim do secundário. Em marcha rápida às voltas e voltas ao redor da igreja ia-se visitando a Escola de Atenas como quem vai a casa da família de um amigo. Sócrates, Platão, Aristóteles, eram-nos apresentados de uma forma desassombrada, as razões de ser da forma como pensavam, o tempo em que viviam, etc, etc.

Em poucas sessões nocturnas acabámos por nos tornar amigos. De tal maneira que, uma vez por outra, combinávamos um jantar. Havia no entanto duas épocas específicas em que não se podia contar com ele. Em Outubro e em Junho o padre Viana fazia o seu retiro nos arredores de Lisboa. Durante uma semana numa cela fria e húmida de um convento abandonado praticava o jejum e a meditação a kilómetros de distância da povoação mais próxima. Ora acontece que esse convento era conhecido por estar associado a acontecimentos bizarros que ocorriam na sua proximidade. Em grupos de amigos havia sempre alguém que tinha uma história para contar, normalmente assustadora. Ou de corujas que se atravessavam na estrada e desapareciam, gritos de vozes ao longe, até mesmo a falha mecânica temporária de um carro que deixou de trabalhar de um momento para o outro. Quando soubemos do paradeiro dos retiros do padre Viana, o Rodrigo que era mais velho e que já tinha lido mais alguns livros do que o resto da malta lançou-lhe o desafio num jantar.

- Não tem medo de estar sozinho num local daqueles de que se contam histórias terríveis e assustadoras ? – ao que ele respondia descontraído

- Oh meu amigo, eu sou padre. Acredito em Deus. É na graça dele que me entrego. Se tivesse dúvidas ou medo de alguma coisa tinha que escolher outra profissão.

E ficávamos por ali sem mais esclarecimentos. Havia água num regato que por lá passava que lhe mataria a sede. De resto só levava um missal, um terço e um saco-cama. O resto era meditação e oração. Purificação para uma nova época. Mito urbano ou espaço assombrado o certo é que até eu me aventurei (de dia) por aquelas bandas com mais dois “valentões” numa tarde primaveril. Por sugestão ou puro cagaço, o certo é que não nos aproximámos mais do que uns cinquenta metros do local. Voltámos para trás com a ideia reforçada da coragem e singularidade daquele homem de meia-idade que nunca contava tudo o que sabia.

Numa noite de festa de fim de ano lectivo e santos populares voltámos a jantar todos juntos. Talvez devido ao calor toda a gente bebeu mais um pouco do que devia. Após a breve troca de informações (as notas finais e os desejos de continuidade escolar), já depois das sobremesas o padre Viana anunciou que depois do Verão seria colocado numa nova paróquia ainda por determinar. Nós seríamos sempre bem-vindos se o quiséssemos visitar. Na semana seguinte faria mais um dos seus retiros. Ficámos calados a digerir o jantar e a informação. Olhámos uns para os outros como quem interroga quem é que vai fazer a pergunta. O Rodrigo voltou a avançar. Contou a nossa breve aventura de cagarolas e de como não nos conseguimos aproximar do convento em ruínas. E disse qualquer coisa como nunca o iríamos esquecer, nem a sua amizade nem a sua coragem de asceta em permanecer sozinho num lugar daqueles. O padre Viana sorriu, mandou vir uma bagaceira e acendeu o cachimbo. Depois olhou em redor.

- Já que para o ano não vou estar cá quero-vos deixar uma lembrança antes de partir. Aquele lugar de que vocês tanto falam em ignorância e medo foi em tempos habitado por um grupo de monges que fazia voto de silêncio. Viviam do que produziam numa horta e dedicavam o seu tempo à meditação e oração. Durante as invasões francesas houve um esquadrão de cavalaria inimigo que passou por ali. Quando deram com o convento roubaram os mantimentos, pilharam as poucas relíquias que lá existiam, incendiaram o edifício e massacraram todas aquelas duas dezenas de almas que lá viviam. Desde esse trágico dia nunca mais ninguém lá viveu. Ficaram as paredes e o regato como únicos testemunhos do que uma vez terá sido um espaço habitado por alguém. E agora digam-me vocês..?  Que espécie de vibrações é que poderia ter um lugar onde tudo isto aconteceu?

 

Artur

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