domingo, 9 de janeiro de 2022

A PREPARAR O ROLO PARA CONTINUAR A PINTAR.

 Oitavo dia do primeiro mês de dois mil e vinte e um.

Sei que não é efeito da dose de reforço mas efeito da vida a acontecer. Há partidas inevitáveis e chegadas também. Há um todo que não se controla e outro tanto que se pode controlar. E há a falsa sensação de controle que existe como um placebo que cuida de todos os anseios e disfarça todas as incapacidades. Cheguei a casa a correr para me agarrar a um paracetamol só porque quero terminar o que já comecei antes que comecem os calafrios que nem sei se vão acontecer. A gata do meio brincava com o que me parecia um rato e não a contrariei até perceber que voa. Por isso relembro-me do dia em que encontrei um pintarroxo no meio do caminho agrícola das courelas. Estava aflito duma asa e não conseguia recuperar o voo. Parei o carro, saí e peguei nele. Nem tentou fugir e pu-lo no meu colo de encontro ao peito e à pele, no lugar onde as mães confortam os filhos. No dia seguinte já estava recuperado mas mal protegido da gatinha lambona. Fiz-lhe uma pira e encomendei-lhe o espírito esvoaçante ao deus dos pássaros e a São Francisco. Nesse dia voltei atrás, a todos os pássaros que se cruzaram comigo ao longo da vida até chegar ao primeiro, aquele que escondi dentro da gaveta da minha cómoda para poder cuidar dele. Quando começou a piar a minha mãe deu por ele. Fizemos uma papa de farelos e demos-lhe água. Ela disse-me pela primeira vez que, se interferimos com a natureza ao ponto de salvar um animal,temos que ser responsáveis por ele até estar em condições de voltar a ela. Corri para a gata do meio, a Gaya, e tirei-lhe o pardal moribundo da boca. Chorei até encharcar-lhe as penas mas não o larguei até ao último pulsar do peito pequeno que estava de encontro ao Monte de Vénus da minha mão esquerda. Fiz o que todos queremos para o nosso último suspiro que é o conforto duma mão amada. Nestes tempos em que se banalizou a morte em tempo recorde, que se legislou a ausência de toque, que se obrigou a existência asséptica da convivência dos corpos, resta a empatia como exercício de sobrevivência do espírito que se quer límpido. E resta muito se soubermos dar músculo à memória mais antiga da nossa existência. Relembro-me, novamente, dos últimos pedidos de minha mãe. Desses pedidos ressalvo o mais importante. Ela repetiu-o ao longo da minha criação, durante 38 anos, que foi a idade com que me teve e a idade que eu tinha quando ela se foi. Sabia que eu era uma “cabeca no ar” e reforçou a ideia até que, quando chegou o momento, eu não me esqueci de lhe pedir a extrema unção. Vi a agitação e a calma, o antes e o depois. Pergunto-me se, nestes tempos de máscaras e álcool , plásticos e painéis,isolamentos e muito medo, essa unção tão  necessária estará a ser feita. Onde fica a espiritualidade e a benção de existir no meio desta loucura pandémica? Onde fica o toque, a pele, o calor do peito dum ente amado, o conforto duma mão apertada sem luva nem desinfetante? 

Não sei se é efeito do reforço, da terceira dose, ou da minha condição de quase eremita, ou dum pequeno pássaro que tive a honra de untar a fronte com as lágrimas da minha incapacidade.

Elsa Bettencourt

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