Nos anos 60 eu andava de bibe, ia à escola e adormecia cedo. Nos anos 60 ainda não tinha acontecido o 25 de Abril, todos falavam por meias palavras, vários livros tinham sido escondidos e havia uma guerra. Uma guerra que nos entrava pela porta dentro de várias maneiras e que nos afectava a todos mesmo que usássemos um bibe, fossemos à escola e nos deixássemos adormecer pouco depois do jantar. A guerra visitava-nos levando alguém (o meu pai, os meus primos mais velhos da mesma geração) por algum tempo, ou, algumas vezes, não devolvendo todos os que levava (o namorado de uma tia minha desapareceu durante uma operação de pára-quedistas e nunca mais ninguém o viu). Outra forma de a guerra entrar nas nossas casas era quando se aproximava o Natal e as tropas apareciam a deixar os seus votos de boas festas na rádio e na televisão. Lembro-me vagamente de a minha avó me acordar para ouvir a voz do meu pai no rádio perto da uma da manhã. Na televisão era mais cedo, logo após o telejornal. E ao Sábado a seguir ao almoço passava uma súmula da semana inteira. Um dos meus primos, o Manecas, estava na Marinha na Guiné e apareceu na televisão numa Terça Feira. O pai dele, o meu tio avô Manuel, não tinha conseguido ver. De modo que no Sábado seguinte, logo a seguir ao almoço, deslocou uma poltrona e uma pequena mesinha de apoio para um metro à frente da televisão para ter a certeza que não perdia a mensagem de Natal do filho. Em cima da mesa colocou uma garrafa de vinho do Porto e um pequeno cálice. Mas a emissão tardava em começar de maneira que o meu tio ia aquecendo com um cálice antecipado.
Á saúde do Manecas
E a emissão continuava com
publicidade e mais aquele programa antes das mensagens, mais o directo de onde
não se passava nada. E o meu tio prolongando o aquecimento.
Á saúde do Manecas
Quando finalmente começaram a
chegar as mensagens de boas festas das nossas tropas já o meu tio enfrentava
uma guerra feroz em se manter acordado. Os olhos fechavam contra vontade, a
cabeça descia sobre o peito para se voltar a erguer num esticão. Uma genica
breve que depressa dava lugar ao amolecimento. Por fim o corpo rendia-se e o
sono reclamava a sua vitória incondicional e absoluta. Os militares sucediam-se
no ecran a preto e branco até que, para grande alegria da família, o Manecas
apareceu pela segunda vez naquela semana. Mas nessa altura a única coisa que o
tio Manuel conseguia fazer era ressonar despudoradamente. Mais tarde quando
confrontado com a situação o meu tio nunca aceitou que estivesse a dormir.
Antes pelo contrário, lembrava-se perfeitamente de ver o filho na televisão.
Pormenores é que não havia porque aparecia sempre um assunto muito mais urgente
na conversa.
Muitos anos mais tarde num
encontro de família tive ocasião de contar esta história ao Manecas e de
dividir uma enorme gargalhada com ele. Ainda bem. Hoje foi o funeral do Manecas
e a maneira que encontrei de lhe dizer o quanto o estimo foi esta pequena
história passada com o pai dele num tempo em que eu usava bibe, ia á escola e
adormecia logo a seguir ao jantar.
À tua saúde
Manecas…
Artur
1 comentário:
Ao Manecas... a todos os Manecas!
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