terça-feira, 2 de junho de 2015

ELEGIA PELOS ÚLTIMOS AMANTES VIVOS



Os últimos amantes ainda vivos, vampiros num mundo de zombies.


É a história mais antiga do mundo : a de Adão e Eva, que vivem há séculos e procuram sempre sangue, um pouco enlanguescentes devido à sua longa relação e deprimidos pela modernidade que nada reflecte a sua cultura antiga. Eles... eles lembram-se de tantas coisas, tendo cultivado durante tanto tempo o gosto refinado pela música e pela literatura. Jarmusch fornece uma visão panorâmica do passado preenchido com poesia e conhecimento - quer pertence sempre às elites, às verdadeiras elites  tantas vezes desprezadas. Se um artista  underground vive na margem e desenvolve as suas criações na clandestinidade, como o protagonista do filme, recluso na sua casa e perseguido pelos fãs, aconteceu exactamente o mesmo às grandes figuras das artes e das ciências de outrora, Copérnico, Newton, Darwin, ridicularizados pelos seus contemporâneos. O casal de tez pálida sobrevive tanto de sangue como de livros e música. No frigorífico, em lugar de alimentos, encontram-se volumes empoeirados e as suas conversas alimentam-se de termos latinos; são eternamente jovens, curiosos acerca de tudo, atraídos sobretudo pelas paisagens nocturnas, sítios desérticos, terrenos baldios, fábricas desactivadas, crescendo o seu fascínio por tudo aquilo que se esconde na sombra, deslocando-se de noite através da cidade fantasma. Detroit e Tânger servem de décor às suas vagabundagens nocturnas; as antigas poesias inglesa, árabe e hebraica, são as suas referências, bem como os movimentos musicais dos anos 50 e 60, passado recente e, no entanto, já esquecido. O seu amor, por antigo que seja, encontra uma metáfora no conceito moderno da não-inseparabilidade, confirmada pela experiência do Aspecto, teoria de imbricação quântica segundo a qual as partículas ligadas na origem lembram-se da sua unidade primária e adoptam a mesma trajectória, mesmo que se encontrem a uma distância incomensurável. Tais são os amantes de Jarmusch, tal é o amor que perdura  séculos com os seus trovadores, artistas de todos os tempos. Evidentemente, todo o poeta é um vampiro, um plagiador, como Shakespeare que, segundo certas hipóteses, se apropriou da obra do dramaturgo elisabetiano Christopher Marlowe, ele próprio uma personagem do filme. Em torno deste grande escândalo da história da literatura se constrói a anedota do filme e a sua personagem, o velho poeta inglês moribundo, vampiro pois claro. Após a sua morte, os admiradores Adam e Eve, tornam-se isolados, sem ídolos: já não têm heróis, nem sabem o que fazer. Para além de retratos ilustres do passado - Baudelaire, Poe, Kafka, Bach e de alguns guitarristas lendários - já não há estrelas nascentes nestes nossos tempos: se um talento brilha algures num clube nocturno de Tânger, uma jovem cantora libanesa, ela é demasiado dotada para tornar-se célebre. Desde que permaneça desconhecida, eclipsada aos olhos dos consumidores diurnos da cultura de massas.
O olhar de Jarmusch sobre o passado longínquo e sobre o último período criativo, sobretudo musical, da sua juventude, simbolizado pelos discos em vinil e uma colecção de guitarras de culto, é um olhar profundamente nostálgico. Sente-se tão fascinado por Schubert quanto por Charlie Fathers; o seu gosto artístico está sempre à procura de uma criação original, como a de Jack White, músico e guitarrista de Detroit; a sua curiosidade explora o sublime de todos os tempos : entre Lorenzo Giberti, escultor florentino do Quattrocento e o movimento musical do "garage rock", não há nenhuma fronteira para um artista em busca de inspiração. Esse vampiro, sempre marginal, tem que inventar novos expedientes para sobreviver, compor música, fazer filmes, construir um dínamo que capta a energia cósmica, a luz  da Lua, um diamante musical no Céu que, no cinema, poder ser um simples "néon" de um bar aberto toda a noite. O vampiro de Jarmusch, ou Jarmusch como vampiro, preserva o seu dandismo sedutor apesar da sua desilusão. Desta vez, conta uma história de amor que não se esgota desde que os amantes tenham vontade de dançar, de ouvir música, de admirar paisagens insólitas. As mais belas imagens e sensações permanecem na sombra que a sala de cinema oferece sempre, desprezando as pressões hostis aos vampiros.

Sem comentários: